sensato às seis da manhã

Acendo um cigarro. Trago forte. Fico encostado na porta por um tempo. Tento ouvir o que há lá dentro. Viro a chave. Entro. Dou alguns passos no escuro. Ligo a TV. Coloco no mute. Vou para a cozinha e abro a torneira. Bebo até ficar estufado. Sento em frente a TV. Espalhado pelo chão, anotações, cd’s, livros, meu corpo. No silêncio vasculho pensamentos. Procuro por idéias fixas. Mas idéias fixas não existem. Elas se desprendem tão logo viram idéias. Apago o cigarro.

Estrangeiro

Enquanto na França 20 mil estudantes enfrentavam a policia na Noite das Barricadas, Ulises Belano nascia em Rosário, na Argentina. Um dia depois, estudantes argentinos decretavam greve contra a política educacional do País...
Com nove meses fui para Antofagasta, Chile.
Dois anos mais tarde vim morar em São Paulo, Brasil.
Mais sete anos e atravessei o continente, San Sebastian, Espanha.
Por lá fiquei durante doze anos até que resolvi voltar para SP, Brazil.
Meu pai morreu um mês após eu nascer.
Era militar. Matou inocentes.
Minha mãe o acompanhou dois anos depois.
Era pianista, até conhecer meu pai.
Da minha infância e juventude guardo poucos memórias.
Me casei uma única vez. Lucía. Foi em 86.
Nos separamos em 90. É a única mulher que nunca deixarei de amar.
Foi com ela que tive um filho. Tem 19 anos.
Visito Ricardo quando posso. Última vez foi há dois anos.
Tenho medo da morte. Mais ainda da velhice.
Já não acredito em mais nada.
Não tenho religião. Nem partido. Muito menos uma causa.
Sou jornalista. E escritor, de aluguel.
Tenho dois livros publicados na Espanha.
Os dois sob encomenda.
Um sobre o escritor Gabriel Aresti.
O outro é um guia turístico de Euskadi (País Basco).
No momento escrevo para uma revista de ciências.
Ganho pouco. Mas gasto pouco também.
Pouco também são os amigos. Talvez por culpa minha.
Gosto de ir ao cinema aos domingo.
Coleciono moedas de cinco centavos.
Fumo. Bebo.
Moro sozinho. Em São Paulo.
Sem objetivos, me aventuro por qualquer coisa que valha a pena.
Poucas coisas.
Por isso minha fixação nesse jogo em que me colocaram.
Pensei em muitas coisas nesses dias.

dois dias depois de antes de ontem

continuo com as marcas deixados pelos meus três amigos. caros amigos. ainda sinto um pouco de dor no corpo. já se vão quase 48 horas de clausura. sem comer. apenas água. ligaram do trabalho. não atendi. depois dou uma explicação. precisava desse tempo, que não é meu., não é seu, não é nosso. esse tempo que só faz ruir. deitado na cama. nu. aproveitei e dormi. descansei. meditei. fumei. e me masturbei. afinal, precisava de um pouco de ação. também li e reli as cartas. quem as mandou? quem sabe dessas coisas? e a foto? como conseguiram? e ainda há a orelha, que descansa em meu congelador. de quem será ela? perguntas e mais perguntas. me colocaram nesse jogo. dele não posso sair.


Quatro envelopes.
Jogados por baixo da porta.
Uma memória.
Uma foto.
Uma biografia.
Uma matéria.
Minha vida.
Campainha. Pacote. Dentro uma orelha.
Nada mais. Sem remetente. Nenhum nome.
Eu. Detetive. Fugitivo.

porrada!

ainda estou vivo! acabo de chegar da rua. ou seria do inferno. um lugar nunca antes visitado... por mim. merda! meu corpo sente as dores. minhas mãos, meu rosto. ainda estão sujos. de sangue. de suor. e pó. virei pó. um corpo moído. nunca me senti tão fraco. ainda estou ofegante. uma pausa. um respiro. um trago. no cigarro. outro na bebida. mas que merda!. só tenho leite em casa. preciso ir ao mercado. mas agora não. hoje não. amanhã não. essa semana não. não. não. não. não vou sair de casa. mais uma vez, merda! para onde estou indo. para onde minha vida vai. preciso pensar. preciso parar. preciso contar. esse será meu registro. preciso escrever agora, enquanto a memória ainda responde. eram três. deve haver alguma relação. me seguiram. devem saber onde ela está. eu percebi que me seguiam. será que ainda está viva? não podia fugir do jogo. já se vão dois meses desde a última vez que a vi. precisava saber até onde ia minha valentia. continuei andando. andando. entrei em um bar. pedi uma bebida. um gole só. pedi outra. eles estão me esperando lá fora. outro gole. mais uma, por favor! e outra. outra. agora sim. ninguém me segue. ninguém me segura. ninguém me dá medo. sigo a seta. vou para casa. dobro a esquina. esquina torta. FILHOS DA PUTA!!! caí no chão. não vi mais nada. senti tudo. soco. pontapés. ponta dos pés. na barriga, na cabeça, nas pernas. não falavam. eram máquinas. era automático. muito simples. fiquei com medo. muito medo. pensei na morte. pensei em meus pais. lembrei da primeira vez que apanhei. soltei um sorriso. que virou gargalhada. a força dos golpes aumentaram. apaguei. foram segundos. devem ter sido. me arrastei. sentei no meio fio. não havia ninguém por perto. sem reação. cidade vazia. voltei a deitar. mal conseguia respirar. tempo passou. fiquei parado até ter força. até conseguir me arrastar. três quarteirões. cheguei. estou aqui. vivo/morto. não sei. chuveiro. água fria. escorre pelo meu corpo... dorme!

quem são eles? o que sabem sobre mim? há alguma relação com a orelha? com as cartas? com ela?

aos poucos contarei aqui tudo o que vem acontecendo em minha vida nos últimos meses. toda a história. também falarei um pouco sobre mim. afinal, começo a ser o personagem principal dessa história. já não sei mais o que realidade e o que é ficção. por enquanto, só tenho a dizer que a dor é grande.

na planície

consumação dos atos. o estrangeiro. a busca. a procura. desfocado. ato consumado. obras de um amor louco. o mamífero. olhar difuso. olhar selvagem. o estrangeiro selvagem. na planície. epilepsia. gangrena. calado me escuto. pílula. vitamina c. conversa de botequim. dois pra cá, dois pra lá. realismo visceral. nos escombros. terceiro ato. conversa fiada. parágrafos urbano. na minha cabeça. sincopado. polirritmia. lacrau. dialeto público. perecível...

...foram apenas alguns, dos vários nomes que poderia ter ganho. ficou na planície.