Termina tudo igual, igual

As luzes piscam. O som alto. Só a vejo quando já está bem próxima de mim. Diz algo que não compreendo e vai embora. Tento seguir, mas as pessoas a minha volta não permitem. Perco-a. Tento buscar na memória aquela mulher. Não acho.

Volto para o bar e peço mais uma cerveja. Esqueço do show e fico a observar. Todos alegres, cantam junto com a banda. Uns pulam. Outros ensaiam uma dança. Quem era aquela mulher? Sinto alguém a me observar. Viro caça. Julia me olha de um jeito estranho. Não é raiva. Não é tristeza. É um olhar que apenas as mulheres possuem. Ela se aproxima e solta um sorriso. Me beija, me abraça. Diz que gosta de mim. “Tenho medo de te perder”, me revela. Eu quieto, penso nessa garota que revirou a minha vida. Deu emprego, casa, abrigo. Amor, até demais. Vejo que seus 18 anos carregam mais vida do que os meus 40.

Um gole, para esquecer. Um abraço forte. Ela sorri de novo, mas agora vejo um sorriso real. Julia diz que está amando o show. Eu também. “Viu, eu disse que o Amarante finalmente fez algo bom”, me provoca. Sabe que gosto de Los Hermanos. Digo que ela tem razão. E vamos para mais perto do palco. E cantamos:

I'll keep holding on to you

see no use perfecting lives with strangers
if only you, if only now

Conheci Little Joy com Julia. Logo na primeira noite que nos conhecemos. Foi com esse pretexto que ela me convidou para entrar... na sua vida. “Vem ouvir. Você vai gostar. Bom, eu gosto.” Não gostei. “Tudo bem, agora você já está aqui dentro”, ela falava sem pudor.

No dia seguinte, junto às minhas chaves encontrei o iPod dela com um bilhete: “Fui para o ateliê. Desculpa, mas não queria te acordar. Fique com meu iPod. Quero que ouça de novo Little Joy. Beijo.” Até chegar em casa já estava viciado naquele som. Gostava daquela essência. A mesma essência que encontro hoje.

Volto meu pensamento para o show e olho para Julia, mas vejo a mesma mulher de minutos atrás. Fico confuso. Ela me olha. Julia me olha. Julia corre. Eu corro. Mais uma vez, fico preso. Quando alcanço, toco-lhe os ombros, sinto-a tremer. Sinto que está chorando. Me pede para arrumar outro lugar para passar a noite. Ainda ouço:

Something changes when she glances

Enough to teach you what romance is
With the right step they try their chances
Somewhere else

“O que é a realidade? Está no que vemos, no que pensamos, no que acreditamos?!? Quem criou a realidade? E os sonhos onde entram nisso? No que devemos acreditar? Há dois mundos: um nosso, aberto ao acaso; outro criado para nós, imutável.” Confuso. Escrevo no moleskine, presente de Julia. Me busco nas palavras, enquanto ouço Albert Hammond Jr., em um ponto de ônibus às quatro da manhã. Em In Transit, coloco o volume no máximo.

By the way she looked I should've calmed down

I went too far
Oh thats all I got to say

Um achado. Depois de três anos, resolvi baixar o disquinho do guitarrista do Strokes. Penso em Julia. Dessa vez fui eu que apresentei. Ela não gosta de Strokes. Mas gostou de Yours To Keep. Fico pensando nos últimos meses. Meus dias com Julia. Depois de tanta tormenta, estava começando a construir algo. Mas o tempo... a tudo destrói.

Ligo de um orelhão para Julia. Ela atende, pede perdão. Diz para eu voltar. Pego um táxi. Desço, caminho a passos lentos. Toco o interfone. Ninguém atende. Fico preocupado. Volto a tocar. Nada. Grito seu nome. O porteiro pergunta o que estou fazendo. Ele não me reconhece. Peço para abrir, ela me manda ir embora. Fico parado, não sei por quando tempo. Atravesso a rua. Sento no meio fio, esperando. Olho para frente do prédio. Agora vejo a mesma mulher do show e vejo Julia e vejo o carro e vejo o corpo no ar até tocar o chão. Corro.

Everytime
Everytime
Everytime


É o despertador com Nickel Eye. Olho para o lado. Julia dorme feliz.

Noites boas

Lanço o catarro no espaço. Penso na última vez que estive com minha mãe. Ela sempre preocupada comigo. Sempre preocupada com todos. Nunca com ela. Passos rápidos. Nem vejo meu catarro tocar o chão. Passos rápidos. Já estou em outro lugar. Lanço o cigarro. Busco a respiração. “Olhe para os dois lados”, ela sempre dizia. A rua completamente vazia. Meu rosto colado ao chão, apesar da enorme distância que nos separa. Sinto o toque de sua mão em minha cabeça. O carinho. Seu sussurro ao pé do ouvido. A verdade é que sempre tive pena de minha mãe. E vejo que seu fantasma me acompanha. Talvez seja essa a história da nossa família. Perder em sonhos. Amar, em silêncio.

...

Toda volta é humana. A permanência é sobrenatural. Esquecer, passar um branco. Não sou assim. Nem quero ser. Por isso, volto. Por isso, estou aqui. Por isso, escrevo. Por isso, tomo a liberdade de tentar entender a minha vida. Organizar jamais. Nunca! Apenas, entender.

...

A orelha - mais bela do mundo, como dizia a etiqueta - permanece imóvel. Nem meus toques a fazem reagir. Será que morreu? Não sei se aguentarei a morte de mais um amigo. Outro dia tentou fugir. Corri atrás. Alcancei-a antes de tomar o elevador. Tentou latir. Ameaçou me morder. Expliquei minhas razões. E fiz uma promessa. Mantê-la na geladeira. Sua nova casa, mais colorida. Seus novos amigos, mais divertidos. Sua felicidade me fez inveja. Minha inveja a fez voltar ao congelador. Os tempos de tristeza voltaram e com ela minha antiga companheira. Calada, congelada, compreendia o que eu falava. Porém, hoje, ao voltar para casa, encontrei a orelha pendurado em um fio dental. A mais bela do mundo, como dizia a etiqueta, permanece agora congelada e imóvel. Por que o fim? Melhor assim. Ainda mais agora que arrumei um nariz poliglota, que adora filmes franceses e entende tudo de vinho e queijos. Já arrumei suas acomodações. Ele viverá no forno.

...

“Sos mucho mejor que los demás.Todo el día pensando, pensando.Vos soñas con un barrio mejor y te quedaste mirando la nada.Amigo piedra, necesito que me ayudes con mi auto otra vez, para viajar a ese lugar nuevo.”
*El mato a un policia motorizado

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A volta de Belano... alguns anos mais novo.

A cobrança e a comparação são coisas do diabo. Sempre presentes, logo que da vida tomamos consciência. Nos faz mal. Castiga. Chega a ferir. Vêm dos pais, amigos, amores. Seja na casa, na rua ou no trabalho. Porém, o pior estágio é quando elas já fazem parte de nós. Quando passamos a ser feitos de cobrança e comparação.