As cidades

Depois de meses procurando um apartamento, Rafael ficou feliz ao poder entrar em um espaço seu. Só seu. Um canto onde possa fazer o que bem entender, não que seja um rebelde, mas sempre se sentiu um estranho na família, na escola, no trabalho. Fechou a porta e deitou no chão. Acordou assustado, suando, no escuro, “que horas eram?”. Percorreu todos os cômodos, ainda vazios, até chegar à cozinha. Não sabia o que procurava, então decidiu que queria nunca mais sair dali. E num movimento lento e teatral, abriu o zíper colocou seu pênis para fora e mijou na pia. Tomou aquilo como um ato libertador.

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A caixa possui medidas exatas. Tem seis metros de altura, por cinco de largura e oito de comprimento. Completamente preta, não possui nenhuma inscrição, o que intrigava a todos. Porém, o que causava mais estranheza era o motivo dela estar ali. “Quem a havia deixado para trás?” Tentam abrir. Mas como? Perfurar, serrar, explodir. O tempo passa. E se até um determinado momento a curiosidade de todos aumentava, aos poucos a caixa começou a ser esquecida, com os seguidos fracassos na tentativa de descobrir o seu conteúdo.

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A idade chega. Seja no jeito, mais amargo de ver a vida, seja no corpo, marcado por rugas. Passou a rejeitar o contato com as pessoas. Só sai de casa para ter certeza de que o mundo ainda está lá fora. Apesar de não acreditar Nele, dá graças a Deus por teus filhos a terem deixado, largada ali. Suas roupas, tão velhas como ela, já são trapos. Não quer mais saber de banhos. Os dentes podres, nas pernas já surgem algumas feridas. Sua aparência não é mais motivo de preocupações. A vida dando adeus. Tem seus livros, seus discos, suas lembranças, o que lhe basta. Hábitos antigos preserva, como folhear álbuns de fotografias, passando longas horas em cada foto. Nas imagens vê o passado, e tudo que o cercava. O casamento infeliz lhe traz a imagem dos pais. Uma história a se repetir. Os filhos, três, Maria, Antônio, João, todos, sorrindo, para em seguida partirem. Além das fotos, gosta do silêncio. Encostada em sua poltrona, repousa o corpo esperando o momento em que nenhum barulho do mundo chegue aos seus ouvidos.

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“Os traços característicos do ‘modo de vida’ urbano têm sido descritos sociologicamente como consistindo na substituição de contatos primários por secundários, no enfraquecimento dos laços de parentesco e no declínio do significado social da família, no desaparecimento da vizinhança e na corrosão da base tradicional da solidariedade social.” (Louis Wirth)

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Um morto vivo. Uma pedra no sapato. O problema, ainda sem solução, na vida de Joana. O fardo que ela já não aguenta mais carregar. Perdida está deste o acidente com seu marido. Ex-marido, pois aquele ali na cadeira de roda já não tem mais nada de Fernando. Nem o olhar restou. De sua boca, nunca mais ouvirá “eu te amo”, apenas gemidos. Não tinham nem um ano de casados quando aconteceu. O fim chegou. “Por que não morreu?” Maria teme que fique ali para sempre, trocando fraldas e dando papinha. Sua vida é essa. Já pensou em um novo amor, mas não consegue. Já pensou em se matar, mas não consegue.

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A caixa guarda um segredo. Traz dentro de si uma cidade.
Foi o engenheiro que construiu a caixa. O arquiteto a projetou. Uma encomenda do poeta. A partir do sonho do escritor. Já a cidade não. Essa sempre existiu. Essa foi criada por nós.

Quando ela pisou na areia

Quando Renata pisou na areia, meu corpo se desfez. Sua beleza turquesa de amêndoa pérola. Monumento ímpar. Desejo reprimido em meus gestos gastos, frios. Deixo tudo para ter Renata. Mulher de Deus. Sábia é a mão que lhe acaricia. Abaixo a tirania, ordena ímpeto seus ombros seguros. Já frágil, seu colo é um espaço aberto para um navegante.

Deitada ao meu lado, finjo me enganar. Enganar quem? Puxa o tecido, solto, que agora já lhe envolve o corpo. E minhas mãos, paradas, já não sabem se vão. Meus olhos se foram. Procuro a bússola, quando sinto que me perdi. Conversando, ela diz: Gosto de Caetano! Gosto mais é de cada silaba que sobrevoa a boca de Renata e que se vai em direção ao mar. Separadas. Juntas. Únicas.

Faço o contorno do corpo. Miro agora o pé. Calcanhares silenciosos, que à noite, carregam Renata nua até meu quarto. Deitamos. O toque proibido imposto por nós. Esquecemos de tudo. O sono chega. Peço perdão, por escrever versos de madrugada e te acordar. São só versos, seus versos.

Rio de Janeiro. Cidade escolhida por nós. Bela, moldura velha. Pintura moderna. Cores e sons. Na praia ensolarada, mar verde, céu azul. E as ondas caem. Renata levanta e sai, cabelos molhadas, levanta o mar. Vejo a cabeça erguida. Em meio ao mar. Olho o sorriso. Vejo, penso e logo quero Renata.

E o mar carrega e traz de volta o sonho. Ficar ao lado de Renata. Observar. Respirar. Perder o tempo. É assim. Estava sozinha. Triste em seu canto. Convidei-a para uma bebida. Dois. Três. Amantes. Eu apaixonado. Ela pela vida. Saímos pelo caminho sem saber o próximo passo. E já na praia, lembro dos fatos, guardados naquele fim de semana.

E o paraíso

Três minutos. Últimos preparativos. A platéia ávida. Esperando o momento que Lady Gezebel suba ao palco. E dance, mas mais do que dance, tire sua roupa. Mostre seu corpo. Que longe de perfeito, exibe pequenos peitos, embora durinhos, assim como sua bunda. Mas e daí. Contando que mostre sua buceta. Ah, que buceta! Apertadinha. Com uma penugem bem ralinha, curtinha e na qual, com certeza, deve passar água oxigenada. Só assim para ficar... assim.

Dois minutos. E essa porra de sapato com tantos fios para amarrar. Por que não usar nada mais fácil, ou entrar nua de uma vez? Mas não, me querem nessas fantasias, para no fim gozarem de prazer ao verem o que tenho por debaixo da roupa. Querem meu corpo! Todos, homens comuns com desejos comuns.

Um minuto. Eva, Eva. Já! Vamos logo Eva, caralho! Já está na hora, estão te esperando. Tô indo, porra. O quê? É isso mesmo. Só não te meto a mão porque já vai subir no palco. O Cú. Você não me mete a mão porque sou a grande atração desse seu showzinho. Cadela! Como a tua mãe. Vagabunda! Como tua ex-esposa, que te deixou para ficar com uma striper... sua,ainda por cima. Tá,vai lá e não enche.

Já fazem quase três meses que decidi seguir esse oficio. Minha missão é ser striper. Provocar a tentação. Mostrar aos homens que são apenas homens. Deus me fez esse pedido. Um pedido santo. Em troca O terei. Uma troca. Dou a nudez do meu corpo e recebo um lugar ao Seu lado no Paraíso. Um lugar que já foi meu.

O pedido foi feito em Sua casa. Numa igreja, durante a reza aos pés do altar, vi que o Padre me olhava com desejo... A cada reza eu ia com uma roupa mais ousada. Percebendo que eu já havia notado seus olhares, se aproximou. Em meus ouvidos disse que deixaria sua santa profissão para me enrabar. Não, não fiquei assustada. Compreendi tudo naquele momento.

Enquanto me fode, Paulo, o padre, diz que estou no caminho iluminado. Enquanto me come, fala que devo me orgulhar pelo Senhor ter me escolhido. Após o fim do coito, para finalizar o ato, Paulo nos lava com água benta. Limpa posso ir fazer o meu trabalho. Estou no caminho de Deus. Meu Senhor. Amém.

Termina tudo igual, igual

As luzes piscam. O som alto. Só a vejo quando já está bem próxima de mim. Diz algo que não compreendo e vai embora. Tento seguir, mas as pessoas a minha volta não permitem. Perco-a. Tento buscar na memória aquela mulher. Não acho.

Volto para o bar e peço mais uma cerveja. Esqueço do show e fico a observar. Todos alegres, cantam junto com a banda. Uns pulam. Outros ensaiam uma dança. Quem era aquela mulher? Sinto alguém a me observar. Viro caça. Julia me olha de um jeito estranho. Não é raiva. Não é tristeza. É um olhar que apenas as mulheres possuem. Ela se aproxima e solta um sorriso. Me beija, me abraça. Diz que gosta de mim. “Tenho medo de te perder”, me revela. Eu quieto, penso nessa garota que revirou a minha vida. Deu emprego, casa, abrigo. Amor, até demais. Vejo que seus 18 anos carregam mais vida do que os meus 40.

Um gole, para esquecer. Um abraço forte. Ela sorri de novo, mas agora vejo um sorriso real. Julia diz que está amando o show. Eu também. “Viu, eu disse que o Amarante finalmente fez algo bom”, me provoca. Sabe que gosto de Los Hermanos. Digo que ela tem razão. E vamos para mais perto do palco. E cantamos:

I'll keep holding on to you

see no use perfecting lives with strangers
if only you, if only now

Conheci Little Joy com Julia. Logo na primeira noite que nos conhecemos. Foi com esse pretexto que ela me convidou para entrar... na sua vida. “Vem ouvir. Você vai gostar. Bom, eu gosto.” Não gostei. “Tudo bem, agora você já está aqui dentro”, ela falava sem pudor.

No dia seguinte, junto às minhas chaves encontrei o iPod dela com um bilhete: “Fui para o ateliê. Desculpa, mas não queria te acordar. Fique com meu iPod. Quero que ouça de novo Little Joy. Beijo.” Até chegar em casa já estava viciado naquele som. Gostava daquela essência. A mesma essência que encontro hoje.

Volto meu pensamento para o show e olho para Julia, mas vejo a mesma mulher de minutos atrás. Fico confuso. Ela me olha. Julia me olha. Julia corre. Eu corro. Mais uma vez, fico preso. Quando alcanço, toco-lhe os ombros, sinto-a tremer. Sinto que está chorando. Me pede para arrumar outro lugar para passar a noite. Ainda ouço:

Something changes when she glances

Enough to teach you what romance is
With the right step they try their chances
Somewhere else

“O que é a realidade? Está no que vemos, no que pensamos, no que acreditamos?!? Quem criou a realidade? E os sonhos onde entram nisso? No que devemos acreditar? Há dois mundos: um nosso, aberto ao acaso; outro criado para nós, imutável.” Confuso. Escrevo no moleskine, presente de Julia. Me busco nas palavras, enquanto ouço Albert Hammond Jr., em um ponto de ônibus às quatro da manhã. Em In Transit, coloco o volume no máximo.

By the way she looked I should've calmed down

I went too far
Oh thats all I got to say

Um achado. Depois de três anos, resolvi baixar o disquinho do guitarrista do Strokes. Penso em Julia. Dessa vez fui eu que apresentei. Ela não gosta de Strokes. Mas gostou de Yours To Keep. Fico pensando nos últimos meses. Meus dias com Julia. Depois de tanta tormenta, estava começando a construir algo. Mas o tempo... a tudo destrói.

Ligo de um orelhão para Julia. Ela atende, pede perdão. Diz para eu voltar. Pego um táxi. Desço, caminho a passos lentos. Toco o interfone. Ninguém atende. Fico preocupado. Volto a tocar. Nada. Grito seu nome. O porteiro pergunta o que estou fazendo. Ele não me reconhece. Peço para abrir, ela me manda ir embora. Fico parado, não sei por quando tempo. Atravesso a rua. Sento no meio fio, esperando. Olho para frente do prédio. Agora vejo a mesma mulher do show e vejo Julia e vejo o carro e vejo o corpo no ar até tocar o chão. Corro.

Everytime
Everytime
Everytime


É o despertador com Nickel Eye. Olho para o lado. Julia dorme feliz.

Noites boas

Lanço o catarro no espaço. Penso na última vez que estive com minha mãe. Ela sempre preocupada comigo. Sempre preocupada com todos. Nunca com ela. Passos rápidos. Nem vejo meu catarro tocar o chão. Passos rápidos. Já estou em outro lugar. Lanço o cigarro. Busco a respiração. “Olhe para os dois lados”, ela sempre dizia. A rua completamente vazia. Meu rosto colado ao chão, apesar da enorme distância que nos separa. Sinto o toque de sua mão em minha cabeça. O carinho. Seu sussurro ao pé do ouvido. A verdade é que sempre tive pena de minha mãe. E vejo que seu fantasma me acompanha. Talvez seja essa a história da nossa família. Perder em sonhos. Amar, em silêncio.

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Toda volta é humana. A permanência é sobrenatural. Esquecer, passar um branco. Não sou assim. Nem quero ser. Por isso, volto. Por isso, estou aqui. Por isso, escrevo. Por isso, tomo a liberdade de tentar entender a minha vida. Organizar jamais. Nunca! Apenas, entender.

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A orelha - mais bela do mundo, como dizia a etiqueta - permanece imóvel. Nem meus toques a fazem reagir. Será que morreu? Não sei se aguentarei a morte de mais um amigo. Outro dia tentou fugir. Corri atrás. Alcancei-a antes de tomar o elevador. Tentou latir. Ameaçou me morder. Expliquei minhas razões. E fiz uma promessa. Mantê-la na geladeira. Sua nova casa, mais colorida. Seus novos amigos, mais divertidos. Sua felicidade me fez inveja. Minha inveja a fez voltar ao congelador. Os tempos de tristeza voltaram e com ela minha antiga companheira. Calada, congelada, compreendia o que eu falava. Porém, hoje, ao voltar para casa, encontrei a orelha pendurado em um fio dental. A mais bela do mundo, como dizia a etiqueta, permanece agora congelada e imóvel. Por que o fim? Melhor assim. Ainda mais agora que arrumei um nariz poliglota, que adora filmes franceses e entende tudo de vinho e queijos. Já arrumei suas acomodações. Ele viverá no forno.

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“Sos mucho mejor que los demás.Todo el día pensando, pensando.Vos soñas con un barrio mejor y te quedaste mirando la nada.Amigo piedra, necesito que me ayudes con mi auto otra vez, para viajar a ese lugar nuevo.”
*El mato a un policia motorizado

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A volta de Belano... alguns anos mais novo.

A cobrança e a comparação são coisas do diabo. Sempre presentes, logo que da vida tomamos consciência. Nos faz mal. Castiga. Chega a ferir. Vêm dos pais, amigos, amores. Seja na casa, na rua ou no trabalho. Porém, o pior estágio é quando elas já fazem parte de nós. Quando passamos a ser feitos de cobrança e comparação.