Apartamento 501

    
    
1.
...foi lá que ouvi pela primeira vez o nome de Alberto Candreva. Lembro que nesse dia, Haroldo, o anfitrião, me chamou de canto e perguntou se eu estava bem. Estranhei, mas respondi que sim, estava muito bem. Ele assentiu com a cabeça, porém vi em seus olhos que algo havia acontecido. Hoje vejo que ele foi o primeiro a perceber para onde estávamos indo. Poetas. Éramos todos jovens poetas. Nos reuníamos sempre no apartamento 501. Todos os dias após as aulas. Haroldo, Paula, Ricardo, Irênio, Lucia e eu. Mais os convidados. Sempre apareciam novos poetas. Passávamos a noite lendo poesia, falando de poesia. Até o momento em que tudo era silêncio e só existia Coltrane. Sempre Coltrane. E cada um partia. Sem se despedir. Sabendo que logo estaríamos juntos de novo. Sim, foi lá no apartamento 501 que ouvi pela primeira vez o nome de Alberto Candreva. Tenho quase certeza que foi Ricardo quem falou do poeta italiano. Encontrou em uma antologia de poetas europeus que possuíam deficiência física. Candreva tinha apenas parte dos braços. O pouco que conseguimos descobrir era que a deficiência vinha de uma doença hereditária. E por isso, dedicava a maior parte dos poemas aos pais. Ricardo também era deficiente. Era cego. Tinha Retinitis Pigmentosa, doença hereditária e degenerativa que primeiro lhe tirou a visão noturna, para em seguida lhe deixar numa noite eterna. Falo tudo isso e poderia falar muito mais, mas preciso trazer ela. Se lembro bem desse dia é porque vi pela primeira vez Beatriz. Ficou o tempo todo de lado. Ouvia com admiração o que falávamos. Quis ir até ela. Mas não fui. No dia seguinte, me lembro bem, perguntei a todos. Haroldo a tinha visto, porém não conhecia. Ninguém a conhecia. Semanas se passaram sem que eu pudesse tirar aquele rosto da memória. Procurei, mas ninguém a conhecia. Foi a primeira vez que a perdi.



2.
Solo de piano para um corpo perdido



No caos

No escuro

No fim



3.
Era Julia e eu. O que havia ali eram duas pessoas evitando a solidão. Tínhamos um ao outro. E mais ninguém. Sim, por que nessa época já não existiam poetas. Já não existiam jovens. E o que restou do passado evitava lembrar. A poesia já não importava. Julia tentava. Mas eu não tinha paciência. Para evitar aborrecimentos, ela se calava. Como todos se calam. Os jovens poetas também se calaram. O primeiro a se calar foi Haroldo. O mais brilhante. Todos o invejávamos. Sua poesia. Lembro bem do dia em que Haroldo disse: estou indo. Nunca mais tivemos noticia. Com seu sumiço, perdemos também o apartamento. Nossas reuniões deixaram de ser diárias. Nem sempre iam todos. Eu mesmo já estava mais preocupado com minha situação financeira. A pequena quantia em dinheiro que herdara de meus pais já estava no fim. Tive que arrumar um emprego. Com a ajuda de um amigo, fui ser revisor em uma editora.



4.
Quando fechei meus olhos... procurei no escuro os seus lábios. Lábios calmos que um dia me beijaram o corpo inteiro. Talvez estivesse procurando mais do que isso. Talvez estivesse procurando aquele dia em que finalmente te encontrei depois de cinco anos. Ou então, procurando aquela cor. Aquele tom de vermelho. Um vermelho amargo. Um vermelho sangue. Um vermelho que vi em seus lábios quando mordeste o meu peito.



5.
Chovia forte no dia em que cheguei em casa e ouvi:

- Estou indo embora.

- ...

- Será melhor.

- Melhor para você!

Ela saiu. Foi a segunda vez que perdi Beatriz.



6.
Logo que você se foi, procurei por Julia. Ela me aceitou, apesar de tudo. Voltei também a trabalhar. Vivi na rotina. E tão logo veio o convite. Inesperado. Queriam que eu participasse de um grupo ligado ao governo. Um grupo que torturava jovens comunistas. Nunca me falaram nada, mas sei que o convite veio do seu pai. Sim, logo da pessoa que você tanto odeia. Aceitei. Lá voltei à arte. Lá concretizei minha grande obra. Dor em versos. Versos marcados. Corpos marcados. Com uma gilete escrevia minha poesia naqueles jovens. Foram 79 poesias. Todas para você.



7.
Escrevia um texto sobre Sarmiento quando recebi a ligação. A notícia da morte de Beatriz. O que era pouco se mostrou muito naquela tarde em que o sol teimava em secar minhas lágrimas.

Uma foto (ela de costas para a câmera)

 
Às vezes, descobrimos alguém por acaso.

Em um sebo, procurando uma edição rara de Alguma Poesia,

Ou numa loja de departamento.

Na fila para o novo do Woody Allen,

Ou num supermercado às três e quinze da manhã.

Às vezes, conhecemos alguém por acaso.

Tomando um café, fumando um cigarro,

Entre lentes e armações...

Vendo a inocência ir embora numa narrativa fragmentada.

Perdidos em pecinhas de Lego,

Observando peixinhos de fanta uva no céu de João e Maria.

Às vezes... por acaso.

Invenção

 
Em silêncio fico. Meus olhos a acompanham. Será que já sabe? Acho que não. Nem deve imaginar. O som alto. A conversa ao pé do ouvido. Os olhos fixos na tua boca. Disfarço. Tomo mais um gole da bebida. A conversa sai. O momento fica. O silêncio constragedor não vem. O tempo passa. Fico sem entender. Procuro a resposta nos seus olhos. Acho um sorriso. Mas não o sorriso que eu procuro. Vou até o bar e tento esquecer... mas você volta e me dá um beijo.

O sonho secreto de Dora Bernstein


Um solo de sax
Para três mulheres, três
Julia, Marta, Ester


A imagem
Basta fechar os olhos


Elas, pernas cruzadas
Mãos no colo, no joelho, nos olhos
No palco, o músico
E a luz branca sobre sua pele negra.


E a melodia triste
A repetir.

Ensaio


1
O artista plástico Paul Blanc tinha um cachorro velho
O artista plástico Paul Blanc era velho e tinha um cachorro
Os velhos chamavam aquele cachorro de Paul Blanc





2
A atriz voltou sem as malas.
Ficou três dias. E partiu.
Nunca mais a vi.





3
Quando criança, o escritor pulava cada vez mais alto
Para alcançar a mão de seu pai.


*minha homenagem ao poeta Alberto Candreva

A garota do comercial


Tinha o corpo lindo. Branquíssimo.
Ainda me recordo.
O ar blasé que tanto odeio.
Não sabia quem era Leonard Coen.
Mas amava uma banda obscura da escócia.
Levou meus livros do Cortázar. Minha bicicleta. Meu walkman.
Se eu conseguisse lembrar seu nome. Seu endereço.

Quero escrever.
Uma canção para ela. Ou uma canção sobre ela.

“Caderno de anotações” *, de Francisco Piñera Villalba

Voltando do trabalho, encontrei um pequeno caderno de anotações no chão do trem. Em meio à multidão, me chamou a atenção por ser parecido com o que tenho. Esperei todos saírem. Como ninguém havia reparado ou se tinha não fez questão, decidi pegar o pequeno caderno preto de elástico vermelho. Nele apenas um nome, Roberto Oliviedo, e três páginas com o que pareceu ser o começo de um conto. O desejo de ler foi imediato. Porém, logo que comecei, fui pego por uma vertigem. Guardei na mochila. Em casa, li o que me pareceu ser uma assombração. O texto poderia ter sido escrito por mim. Eu estava naquele texto. Me reconheci. Inclusive o fato de ter encontrado aquela mulher, tenho certeza, a mesma do conto, dias atrás, aquela mulher, eu a tinha visto, tenho certeza. Coincidência ou não, utilizo o texto de Oliviedo para contar o que senti ao ver o olhar daquela mulher.


Um rosto caído. A imagem clássica. A menina sozinha. A sala imensa. Toda branca. O ar, frio. Ela está descalça. Veste a roupa que lhe dei, já não me lembro quando. Ontem?

Busco seu olhar. Sigo-o. Ela olha para o chão. Nunca para mim. Perco a noção de tempo e espaço. Até que percebo algo em suas mãos. Estão molhadas. Fecham e voltam a se abrir, começando pelo mindinho, até chegar ao polegar. Repete o movimento. Vejo surgir o papel. Amassado.

Com medo, permito-me a aproximar. Ela levanta a cabeça. Arregala os olhos. Assustada, foge. Eu fico. O papel que estava em suas mãos também. Uma carta. Meu nome nela. Dentro, uma foto. É a reprodução exata da imagem. O rosto caído da menina, sozinha, no imenso quarto branco.

Agora a reconheço. Ela. A vi outro dia no trem. A mesma que convidei para um café. E aceitou. A mesma que me contou sobre sua vida, seus planos. Ela que acredita em felicidade, lê horóscopos e pratica natação.

Carrega em sua bolsa uma caixinha de música. Ganhou da avó. Lembrança do sonho de infância. Ser bailarina. Balé clássico. Mas o tempo passou. Ela cresceu.

Hoje, só pensa em não perder o emprego. Trabalha na área de Recursos Humanos de uma multinacional. Quer se promovida. Quer ganhar dinheiro. Quer ter seu próprio negócio. Uma loja, pequena, simples, só dela, onde possa vender as “roupinhas” que faz, desde os 16.



*O conto Caderno de Anotações está no livro Los Sueños, de Francisco Piñera Villalba. Pouco conhecido em seu país, o escritor argentino não tem nenhum livro lançado no Brasil. Publico aqui esse conto sem sua autorização, espero que ele não se importe.