Cartão postal

Penso nela.
Em trombones, tubas, trompetes. Em uma cidade do interior. De algum país que visitamos.

Penso no desfile. Uma festa. Uma procissão. Ruas estreitas. Por elas passam, essa multidão.

É nisso que penso, enquanto escrevo. Enquanto tendo colocar tudo em ordem.

Tento não pensar, mas penso.

Em cada momento. Desse desfile, por essa cidade, dessas pessoas. Em cada momento. Desse encontro, por essa cidade, desses dois.

É difícil pensar.

Entro no bar onde estive. Toca a mesma canção. Penso nessa canção e em todos que a cantam enquanto seguem rumo à igreja. Trombones, tubas, trompetes, agora acompanhados por tambores, sistros e crótalos.

Peço água. Observo o casal, na mesa dos fundos.

Penso na cidade, no motivo de tudo. 
Enquanto penso, volto para casa.

Ilana

Para Irene Magalhães


conheci uma senhora
vizinha do meu apartamento
mora sozinha
ou melhor, tem três gatos
Andrey, Branca e Milenka

a vi pela primeira vez dez dias atrás, subindo as escadas
me convidou para um chá
me apresentou o samovar
me contou que nasceu na Rússia
me mostrou no mapa a cidade de Dudinka

ficou órfã com 10 anos
não tinha irmãos
depois de quatro anos, fugiu para capital
foi morar com uns tios
lá conheceu Pavel, seu primo

quando jovem foi atriz
encenou peças de Tchekhov
mas sempre gostou mais de seus contos
lamenta nunca ter atuado no Brasil
"só pensava em esquecer o teatro"

atravessou o oceano em 1985
atrás de Pavel
e até hoje não o encontrou
ficou por aqui
gostou do clima, das pessoas e da caipirinha

aprendeu rápido o português
começou a dar aula de russo
também traduziu alguns poemas de Olga Martynova [eram amigas quando
                                                                                           criança]
para uma antologia de poetas russos
nunca publicada

acabo de receber a notícia de sua morte
faleceu ontem, a noite, enquanto dormia

Ilana Panovich
esse era o seu nome
esse seria o seu nome
esse poderia ser o seu nome
se ela existisse

contagem regressiva


Cansado 

Ele pensou

Ainda posso


Invadiu a casa

Sua própria casa

E rastejando

Foi até ela


Sussurrou
- Há muitos insetos vivendo aqui [apontava para sua cabeça]

Um conto argentino (título provisório)

PARTE 2


- Alô.
- Oi, dona Inês.
- Beto?
- Tudo bem com a senhora?
- Tudo. E com você, meu filho?
- Também. Posso falar com o Jorge?
- Com o Jorge?
- Ele não está aí?
- Não? Desde sexta que não o vejo. Achei que tinha ido passar o fim de semana na casa da senhora e decidiu ficar por mais uns dias.
- ...
- Dona Inês?
- Será que aconteceu alguma coisa com o Jorginho?
- Claro que não. Você sabe como ele é. Deve estar na casa de alguém.
- Deve ser, né?
- Sim. Bom, logo que ele voltar, peço para te ligar.
- Pede sim, Beto.
- Tchau, dona Inês.
- Tchau, Beto. Fique com Deus.
- A senhora também.


UMA SEMANA DEPOIS
- Pois é. Faz tempo mesmo.
- Tudo bem com você?
- Tudo.
-...
- Queria te perguntar uma coisa.
- O que foi, Beto?
- O Jorge. Ele sumiu faz mais de uma semana. A princípio achei que estava na casa dos pais. Depois pensei que estava na casa... de alguém que ele tenha conhecido. Mas até agora não voltou. Isso nunca aconteceu. Você o conhece. Ele jamais sumiria sem avisar.
- Ele me ligou.
- Quando?
- Na quarta. Não. Quinta.
- Falou onde estava? O que queria?
- Estava bêbado. Ligou de madrugada. Disse que eu não prestava. Mas que queria se encontrar comigo mesmo assim.
- Ele sempre te amou.
- Sim.
- Mas falou onde estava?
- Não. Eu disse que não podia encontrá-lo porque tinha alguém na minha cama esperando. Ele desligou.
- E tinha?
- Não. Só estava puta com ele.
- Nunca entendi vocês dois.
- Eu também não.
- Bom, se voltar a te ligar, tente saber onde ele está.
- Sim. Me avisa também se tiver alguma novidade.
- Claro. Beijo, Marisa.
- Beijo.


MAIS DE DOIS MESES DEPOIS
- Um pouco.
- O que anda fazendo da vida?
- Continuo trabalhando naquela editora.
- Ainda?
- Ainda. E você?
- Abri uma agência de social media.
- Caralho, todo mundo está trabalhando com essa porra.
- Só um minuto... desculpa. Era da agência. Preciso ir.
- Claro. Vai lá.
- Precisamos marcar algo. Você, o Jorge e eu. Aliás, como ele está? Continua morando com você? Que cara é essa?
- O Jorge sumiu. Há quase três meses que ninguém tem notícia dele.
- Que merda, cara.
- Sim, é foda. Mas o mais foda é que já estou me acostumando com isso. Às vezes até me esqueço. Acho que só não esqueço de vez porque a dona Inês me liga todo dia para perguntar dele.
- Porra, que foda.
- Foda.
- Foda mesmo.


NOVE MESES E TRÊS DIAS DEPOIS
- Alô.
-...
- Alô.
-...
- Quem é?
-...
- Alô.
-...


ONZE ANOS DEPOIS
- Esses são Pedro e Lucas.
- Parecem com o pai.
- Obrigada.
- Desculpa, Marisa. Mas é verdade. A boca, o queixo. Os olhos também.


NOVE ANOS ANTES
- Que tal marcar aquele almoço no sábado?
- Fechado.


UM MÊS DEPOIS
- Vou me casar com a Marisa.
- Sério?
- Sim.
- Cara, meus parabéns. Tô realmente feliz.
- Valeu. Mas tem uma coisa, Evandro.
- O que foi? Fala logo, Beto.
- Quero que você seja um dos padrinhos.


TREZE ANOS, DOIS MESES E SETE DIAS DEPOIS
- Dona Inês morreu ontem.
- Coitada.
- Falência dos órgãos.
- Como você soube?
- Jorge me ligou.
- Jorge?
- Sim.
- Mas...
- Ele voltou. Vem nos visitar. Domingo.


ALGUMAS HORAS ANTES
- Alô!
- Tô ligando para cobrar as bolinhas de gude que você me deve há mais de 20 anos.
- Jorge!

Um conto argentino (título provisório)

PARTE 1


Como se fosse a única possibilidade para o momento, Leila deixa a água escorrer. Enquanto se seca, olha para o espelho, embaçado. Caminha até a sala. Os pés no chão. Ainda enrolada na toalha, senta no sofá. Apanha o livro de Drummond que ganhou de Daniel. Abre. Fecha. Abre. Deixa sobre a mesa. Encara. Olha as horas. Logo não estará mais sozinha. Apaga a luz. Chegou a achar que tudo seria igual. Só mudaria a cidade, os amigos, os bares. Mas não. Chegou a achar que a mudança faria bem. Começar de novo. Mas não. Só Daniel segue. Ainda a ama. Vanessa chega. Abre a porta, acende a luz, liga o som, tira um sorriso de Leila. Dividem o apartamento. Esse e os outros que moraram antes. Vieram juntas de Piracicaba. Vanessa faz História e trabalha como vendedora em uma loja de roupas. Apesar dos 20 anos, nunca namorou. Mas já faz alguns meses que tem saído com Elisa. Desde então, passou a escutar soul diariamente. Elisa é dona de uma rede de academias. Tem quase o dobro da idade de Vanessa e três filhos. Pedro, o mais novo, veio sábado passado no apartamento. Leila e ele jogaram videogame a tarde intera. Ele se interessou pelos desenhos de Leila. Disse que quer ser pintor quando crescer. Quando perguntaram que tipo de desenhos irá fazer, respondeu que não irá pintar quadros. “Quero ser pintor de casas.”


O telefone toca. Leila deixa tocar.

- O telefone. Quer que atenda?
- Não precisa.
- E se for ele?
- Não posso.
- Vocês precisam conversar.

- Alô
- Leila?
- Oi, Daniel.
- Achei que não ouviria mais a tua voz.
- Para ou desligo.
- Desculpa... sinto sua falta.
- Preciso ficar sozinha.
- Não vai me deixar, né?
- ...
- Só me responde.
- Será melhor.
- O que?
- Não dá mais.
- ...
- Gosto de você, mas não consigo continuar.
- Eu ainda te amo.
- Eu não.
- Não pode fazer isso.
- Já pensei. E muito. Faz alguns meses que venho sentindo isso. Segurei até onde deu.
- Não, por favor.
- Me esgotei daquilo que chamamos de relacionamento. Eu não sei mais namorar. Eu não entendo seu carinho, meu corpo não quer mais você. Meu corpo entrou em um momento em que não quer mais ninguém. Minha mente não quer mais ninguém. Cheguei em um ponto em que não aguento você grudando em mim e em tudo que quero fazer sozinha. Sozinha. Sem você, sem Vanessa, sem amigos. Descobri que gosto de estar sozinha. Gosto de não falar às vezes. Gosto de não ter a obrigação de agradar ninguém.
- ...
- Também quero que você seja você, e do meu lado as coisas não fluem. Do meu lado você é algo que criei. Você é uma ótima pessoa, você é carinhoso, você é inteligente, você é sensível, você é bom de cama. Eu sei que existem milhares de garotas loucas por você. Eu não. Eu me tornei uma pessoa dura demais, irritada demais. Pisei em você nas últimas semanas e você continua me amando. Eu não posso.
- ...
- Ainda seremos amigos. Não agora. Agora não quero te ver. Mas com o tempo.
- Queria te ver mais uma vez.
- Não dá. Preciso desligar. Vanessa está saindo do banho e não quero discutir com ela. Porque é certo que todos ficarão contra mim.
- Eu não.
- Tchau, Daniel.
- É assim?
- Tchau.
- Tchau.

- Era o Daniel?
- Sim.
- Conversaram?
- Sim.
- E?
- Terminei com ele.
- Não, você não fez isso.
- Não quero falar.
- Você devia pensar direito. Todo mundo vê que ele te ama.
- Qualquer um também pode ver que eu não o amo mais.
-Bom, não quero discutir com você. Se é o que você está sentindo. Aliás, amanhã vai rolar uma festa no apartamento do Rafael.
- Acho melhor ficar em casa.
- Vamos... vai ser legal. Vai fazer bem pra você.
- Talvez. Talvez... seja bom.

Eu devia ter ficado em casa. Saio sem me despedir, nem de Vanessa. Já na rua, longe do barulho da festa, sinto o frio. Caminho enquanto não aparece um táxi. Comprimo o tempo, por meio da supressão do espaço. Uma cena chama minha atenção. Um casal. Estão brigando. Me escondo atrás de uma banca de jornal para observar. Ela senta no chão, chora. Ele grita, pega um livro da mão dela e arremessa para longe. Depois se agacha junto à ela. Diz algo em seu ouvido. Levantam e saem caminhando abraçados. Por um tempo, permaneço atrás da banca. Vou até o livro.  Era “A Bailarina”, de Fernando Puyol. Coloco na bolsa. Um táxi passa, aceno, vou para casa. Termino o livro na mesma noite. Nos dias seguintes leio toda a obra de Puyol. E decido que preciso conhecê-lo.

27

 
Pensava em ter um cachorro
Um vira-lata, todo preto
O chamaria de Perro

Pensava em ter uma filha
Daria o nome de Domingas
O mesmo de sua avó. Minha mãe

Pensava em ser um jovem poeta
Nascido em Chihuahua
Chamado Arellano Torres

Pensava em ter um diário
Onde textos invisíveis
Tomariam forma ao abri-lo

Pensava, quando jovem,
Plagiar Vinicius
Para conquistar garotas

Pensava em viver aventuras
Ser Oliver Twist
Ou Tintin

Pensava em ser um urso
Sem vida, empalhado
Exposto na sala de um caçador americano

Pensava em fundar uma cidade
Teria um pouco de cada vilarejo
que vivi em meus sonhos

Pensava em cometer suicídio
Ou homicídio
Me livrar da fixação pela morte

Pensava em voltar ao passado
Ver os meus pais
No dia em que se conheceram

Pensava em tatuar no meu corpo
Desenhos de insetos
E frases de A Metamorfose

Pensava em ter vícios
Fumar cigarro, beber café
Amar uma única mulher

Apartamento 501

    
    
1.
...foi lá que ouvi pela primeira vez o nome de Alberto Candreva. Lembro que nesse dia, Haroldo, o anfitrião, me chamou de canto e perguntou se eu estava bem. Estranhei, mas respondi que sim, estava muito bem. Ele assentiu com a cabeça, porém vi em seus olhos que algo havia acontecido. Hoje vejo que ele foi o primeiro a perceber para onde estávamos indo. Poetas. Éramos todos jovens poetas. Nos reuníamos sempre no apartamento 501. Todos os dias após as aulas. Haroldo, Paula, Ricardo, Irênio, Lucia e eu. Mais os convidados. Sempre apareciam novos poetas. Passávamos a noite lendo poesia, falando de poesia. Até o momento em que tudo era silêncio e só existia Coltrane. Sempre Coltrane. E cada um partia. Sem se despedir. Sabendo que logo estaríamos juntos de novo. Sim, foi lá no apartamento 501 que ouvi pela primeira vez o nome de Alberto Candreva. Tenho quase certeza que foi Ricardo quem falou do poeta italiano. Encontrou em uma antologia de poetas europeus que possuíam deficiência física. Candreva tinha apenas parte dos braços. O pouco que conseguimos descobrir era que a deficiência vinha de uma doença hereditária. E por isso, dedicava a maior parte dos poemas aos pais. Ricardo também era deficiente. Era cego. Tinha Retinitis Pigmentosa, doença hereditária e degenerativa que primeiro lhe tirou a visão noturna, para em seguida lhe deixar numa noite eterna. Falo tudo isso e poderia falar muito mais, mas preciso trazer ela. Se lembro bem desse dia é porque vi pela primeira vez Beatriz. Ficou o tempo todo de lado. Ouvia com admiração o que falávamos. Quis ir até ela. Mas não fui. No dia seguinte, me lembro bem, perguntei a todos. Haroldo a tinha visto, porém não conhecia. Ninguém a conhecia. Semanas se passaram sem que eu pudesse tirar aquele rosto da memória. Procurei, mas ninguém a conhecia. Foi a primeira vez que a perdi.



2.
Solo de piano para um corpo perdido



No caos

No escuro

No fim



3.
Era Julia e eu. O que havia ali eram duas pessoas evitando a solidão. Tínhamos um ao outro. E mais ninguém. Sim, por que nessa época já não existiam poetas. Já não existiam jovens. E o que restou do passado evitava lembrar. A poesia já não importava. Julia tentava. Mas eu não tinha paciência. Para evitar aborrecimentos, ela se calava. Como todos se calam. Os jovens poetas também se calaram. O primeiro a se calar foi Haroldo. O mais brilhante. Todos o invejávamos. Sua poesia. Lembro bem do dia em que Haroldo disse: estou indo. Nunca mais tivemos noticia. Com seu sumiço, perdemos também o apartamento. Nossas reuniões deixaram de ser diárias. Nem sempre iam todos. Eu mesmo já estava mais preocupado com minha situação financeira. A pequena quantia em dinheiro que herdara de meus pais já estava no fim. Tive que arrumar um emprego. Com a ajuda de um amigo, fui ser revisor em uma editora.



4.
Quando fechei meus olhos... procurei no escuro os seus lábios. Lábios calmos que um dia me beijaram o corpo inteiro. Talvez estivesse procurando mais do que isso. Talvez estivesse procurando aquele dia em que finalmente te encontrei depois de cinco anos. Ou então, procurando aquela cor. Aquele tom de vermelho. Um vermelho amargo. Um vermelho sangue. Um vermelho que vi em seus lábios quando mordeste o meu peito.



5.
Chovia forte no dia em que cheguei em casa e ouvi:

- Estou indo embora.

- ...

- Será melhor.

- Melhor para você!

Ela saiu. Foi a segunda vez que perdi Beatriz.



6.
Logo que você se foi, procurei por Julia. Ela me aceitou, apesar de tudo. Voltei também a trabalhar. Vivi na rotina. E tão logo veio o convite. Inesperado. Queriam que eu participasse de um grupo ligado ao governo. Um grupo que torturava jovens comunistas. Nunca me falaram nada, mas sei que o convite veio do seu pai. Sim, logo da pessoa que você tanto odeia. Aceitei. Lá voltei à arte. Lá concretizei minha grande obra. Dor em versos. Versos marcados. Corpos marcados. Com uma gilete escrevia minha poesia naqueles jovens. Foram 79 poesias. Todas para você.



7.
Escrevia um texto sobre Sarmiento quando recebi a ligação. A notícia da morte de Beatriz. O que era pouco se mostrou muito naquela tarde em que o sol teimava em secar minhas lágrimas.